LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO: AS MUITAS FACETAS
Em meados dos anos de 1980 que se dá, simultaneamente,
a invenção do letramento no Brasil, do illettrisme, na
França, da literacia, em Portugal, para nomear fenômenos
distintos daquele denominado alfabetização,
alphabétisation. Nos Estados Unidos e na Inglaterra,
embora a palavra literacy já estivesse dicionarizada
desde o final do século XIX, foi também nos anos de
1980 que o fenômeno que ela nomeia, distinto daquele
que em língua inglesa se conhece como reading
instruction, beginning literacy tornou-se foco de atenção
e de discussão nas áreas da educação e da linguagem,
o que se evidencia no grande número de artigos
e livros voltados para o tema, publicados, a partir desse
momento, nesses países, e se operacionalizou nos
vários programas, neles desenvolvidos, de avaliação
do nível de competências de leitura e de escrita da
população; segundo Barton (1994, p. 6), foi nos anos
de 1980 que the new field of literacy studies has come
into existence. É ainda significativo que date aproximadamente
da mesma época (final dos anos de 1970)
a proposta da Organização da Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) de ampliação
do conceito de literate para functionally
literate, e, portanto, a sugestão de que as avaliações
internacionais sobre domínio de competências de leitura
e de escrita fossem além do medir apenas a capacidade
de saber ler e escrever.
Entretanto, se há coincidência quanto ao momento
histórico em que as práticas sociais de leitura e de
escrita emergem como questão fundamental em sociedades
distanciadas geograficamente, socioeconomicamente
e culturalmente, o contexto e as causas
dessa emersão são essencialmente diferentes em países
em desenvolvimento, como o Brasil, e em países
desenvolvidos, como a França, os Estados Unidos, a
Inglaterra. Sem pretender uma discussão mais extensa
dessas diferenças, o que ultrapassaria os objetivos
e possibilidades deste texto, destaco a diferença fundamental,
que está no grau de ênfase posta nas relações
entre as práticas sociais de leitura e de escrita e a
aprendizagem do sistema de escrita, ou seja, entre o
conceito de letramento (illettrisme, literacy) e o conceito
de alfabetização (alphabétisation, reading
instruction, beginning literacy).
Nos países desenvolvidos, ou do Primeiro Mundo,
as práticas sociais de leitura e de escrita assumem
a natureza de problema relevante no contexto da constatação
de que a população, embora alfabetizada, não
dominava as habilidades de leitura e de escrita necessárias
para uma participação efetiva e competente nas
práticas sociais e profissionais que envolvem a língua
escrita. Assim, na França e nos Estados Unidos,
para limitar a análise a esses dois países, os problemas
de illettrisme, de literacy/illiteracy surgem de
forma independente da questão da aprendizagem básica
da escrita.
Na França, como esclarece Lahire, em L’invention
de l’illettrisme (1999), e Chartier e Hébrard, em capítulo
incluído na segunda edição de Discours sur la
lecture (2000), o illettrisme – a palavra e o problema
que ela nomeia – surge para caracterizar jovens e adultos
do chamado Quarto Mundo2 que revelam precário
domínio das competências de leitura e de escrita, dificultando
sua inserção no mundo social e no mundo do
trabalho. Partindo do fato de que toda a população –
independentemente de suas condições socioeconômicas
– domina o sistema de escrita, porque passou pela
escolarização básica, as discussões sobre o illettrisme
se fazem sem relação com a questão do apprendre à
para caracterizar a construção social de um discurso sobre o
“illettrisme”, discurso que, em seu livro, busca desconstruir; aqui,
atribui-se à palavra “invenção” o sentido de criação, descoberta,
concepção do fenômeno do letramento.
2 A expressão Quarto Mundo designa a parte da população,
nos países do Primeiro Mundo, mais desfavorecida. A expressão é
usada também para nomear os países menos avançados, entre os
países em desenvolvimento.
Letramento e alfabetização
lire et à écrire, expressão com que se denomina a alfabetização
escolar, e com a questão da alphabétisation,
este termo em geral reservado às ações desenvolvidas
junto aos trabalhadores imigrantes, analfabetos na língua
francesa (Lahire, 1999, p. 61).
O mesmo ocorre nos Estados Unidos, onde o foco
em problemas de literacy/illiteracy emerge, no início
dos anos de 1980, como resultado da constatação, feita
sobretudo em avaliações realizadas no final dos anos
de 1970 e início dos anos de 1980 pela National
Assessment of Educational Progress (NAEP), de que
jovens graduados na high school não dominavam as
habilidades de leitura demandadas em práticas sociais
e profissionais que envolvem a escrita (Kirsch &
Jungeblut, 1986, p. 2). Também neste caso as discussões,
relatórios, publicações não apontam relações entre
as dificuldades no uso da língua escrita e a aprendizagem
inicial do sistema de escrita – a reading
instruction, ou a emergent literacy, a beginning
literacy; assim, Kirsch e Jungeblut, como conclusão
da pesquisa sobre habilidades de leitura da população
jovem norte-americana, afirmam que o problema
não estava na illiteracy (no não saber ler e escrever),
mas na literacy (no não-domínio de competências de
uso da leitura e da escrita).
Essa autonomização, tanto na França quanto nos
Estados Unidos, das questões de letramento em relação
às questões de alfabetização não significa que
estas últimas não venham sendo, elas também, objeto
de discussões, avaliações, críticas. Como se verá
adiante, neste texto, tem sido também intensa, nos
últimos anos, nesses países, a discussão sobre problemas
da aprendizagem inicial da escrita; o que se
quer aqui destacar é que os dois problemas – o domínio
precário de competências de leitura e de escrita
necessárias para a participação em práticas sociais
letradas e as dificuldades no processo de aprendizagem
do sistema de escrita, ou da tecnologia da escrita
– são tratados de forma independente, o que revela
o reconhecimento de suas especificidades e uma relação
de não-causalidade entre eles.
No Brasil, porém, o movimento se deu, de certa
forma, em direção contrária: o despertar para a importância
e necessidade de habilidades para o uso competente
da leitura e da escrita tem sua origem vinculada
à aprendizagem inicial da escrita, desenvolvendo-
se basicamente a partir de um questionamento do
conceito de alfabetização. Assim, ao contrário do que
ocorre em países do Primeiro Mundo, como exemplificado
com França e Estados Unidos, em que a aprendizagem
inicial da leitura e da escrita – a alfabetização,
para usar a palavra brasileira – mantém sua
especificidade no contexto das discussões sobre problemas
de domínio de habilidades de uso da leitura e
da escrita – problemas de letramento –, no Brasil os
conceitos de alfabetização e letramento se mesclam,
se superpõem, freqüentemente se confundem. Esse
enraizamento do conceito de letramento no conceito
de alfabetização pode ser detectado tomando-se para
análise fontes como os censos demográficos, a mídia,
a produção acadêmica.
Assim, as alterações no conceito de alfabetização
nos censos demográficos, ao longo das décadas,
permitem identificar uma progressiva extensão desse
conceito. A partir do conceito de alfabetizado, que
vigorou até o Censo de 1940, como aquele que declarasse
saber ler e escrever, o que era interpretado como
capacidade de escrever o próprio nome; passando pelo
conceito de alfabetizado como aquele capaz de ler e
escrever um bilhete simples, ou seja, capaz de não só
saber ler e escrever, mas de já exercer uma prática de
leitura e escrita, ainda que bastante trivial, adotado a
partir do Censo de 1950; até o momento atual, em
que os resultados do Censo têm sido freqüentemente
apresentados, sobretudo nos casos das Pesquisas Nacionais
por Amostragem de Domicílios (PNAD), pelo
critério de anos de escolarização, em função dos quais
se caracteriza o nível de alfabetização funcional da
população, ficando implícito nesse critério que, após
alguns anos de aprendizagem escolar, o indivíduo terá
não só aprendido a ler e escrever, mas também a fazer
uso da leitura e da escrita, verifica-se uma progressiva,
embora cautelosa, extensão do conceito de
alfabetização em direção ao conceito de letramento:
do saber ler e escrever em direção ao ser capaz de
fazer uso da leitura e da escrita.
Magda Soares
O mesmo se verifica quando se observa o tratamento
que a mídia dá, particularmente ao longo da
última década (anos de 1990), às informações e notícias
sobre alfabetização no Brasil.3 Já em 1991, a Folha
de S. Paulo, ao divulgar resultados do Censo então
realizado, após declarar que, pelos dados, apenas
18% eram analfabetos, acrescenta: “mas o número de
desqualificados é muito maior”. Desqualificados, segundo
a matéria, eram aqueles que, embora declarando
saber ler e escrever um bilhete simples, tinham
menos de quatro anos de escolarização, sendo, assim,
analfabetos funcionais. Durante toda a última década
e até hoje a mídia vem usando, em matérias sobre competências
de leitura e escrita da população brasileira,
termos como semi-analfabetos, iletrados, analfabetos
funcionais, ao mesmo tempo que vem sistematicamente
criticando as informações sobre índices de alfabetização
e analfabetismo que tomam como base apenas
o critério censitário de saber ou não saber “ler e escrever
um bilhete simples”. A mídia vem, pois, assumindo
e divulgando um conceito de alfabetização que o
aproxima do conceito de letramento.
Interessante é observar que também na produção
acadêmica brasileira alfabetização e letramento
estão quase sempre associados. Uma das primeiras
obras a registrar o termo letramento, Adultos não alfabetizados
: o avesso do avesso, de Leda Verdiani
Tfouni (1988), aproxima alfabetização e letramento,
é verdade que para diferenciar os dois processos, tema
a que retorna em livro posterior, em que a aproximação
entre os dois conceitos aparece já desde o título:
Letramento e alfabetização (1995). Essa mesma aproximação
entre os dois conceitos aparece na coletânea
organizada por Roxane Rojo, Alfabetização e letramento
(1998), em que está também presente a proposta
de uma diferenciação entre os dois fenômenos,
embora não inteiramente coincidente com a proposta
por Leda Verdiani Tfouni. Ângela Kleiman, na coletânea
que organiza – Os significados do letramento
(1995) –, também discute o conceito de letramento
tomando como contraponto o conceito de alfabetização,
e os dois conceitos se alternam ao longo dos textos
da coletânea. No livro Letramento: um tema em
três gêneros (1998), procuro conceituar, confrontando-
os, os dois processos – alfabetização e letramento.
São apenas exemplos que privilegiam as obras mais
conhecidas sobre o tema, da tendência predominante
na literatura especializada tanto na área das ciências
lingüísticas quanto na área da educação: a aproximação,
ainda que para propor diferenças, entre letramento
e alfabetização, o que tem levado à concepção equivocada
de que os dois fenômenos se confundem, e
até se fundem. Embora a relação entre alfabetização
e letramento seja inegável, além de necessária e até
mesmo imperiosa, ela, ainda que focalize diferenças,
acaba por diluir a especificidade de cada um dos dois
fenômenos, como será discutido posteriormente neste
texto.
Em síntese, e para encerrar este tópico, concluise
que a invenção do letramento, entre nós, se deu
por caminhos diferentes daqueles que explicam a invenção
do termo em outros países, como a França e
os Estados Unidos. Enquanto nesses outros países a
discussão do letramento – illettrisme, literacy e
illiteracy – se fez e se faz de forma independente em
relação à discussão da alfabetização – apprendre à
lire et à écrire, reading instruction, emergent literacy,
beginning literacy –, no Brasil a discussão do letramento
surge sempre enraizada no conceito de alfabetização,
o que tem levado, apesar da diferenciação
sempre proposta na produção acadêmica, a uma inadequada
e inconveniente fusão dos dois processos,
com prevalência do conceito de letramento, por razões
que tentarei identificar mais adiante, o que tem
conduzido a um certo apagamento da alfabetização
que, talvez com algum exagero, denomino desinvenção
da alfabetização, de que trato em seguida.
A desinvenção da alfabetização
O neologismo desinvenção pretende nomear a
progressiva perda de especificidade do processo de
3 Uma análise mais detalhada da progressiva ampliação do
conceito de alfabetização na mídia é apresentada em Soares (2003).
Letramento e alfabetização
Revista Brasileira de Educação 9
alfabetização que parece vir ocorrendo na escola brasileira
ao longo das duas últimas décadas.4 Certamente
essa perda de especificidade da alfabetização é fator
explicativo – evidentemente, não o único, mas talvez
um dos mais relevantes – do atual fracasso na aprendizagem
e, portanto, também no ensino da língua
escrita nas escolas brasileiras, fracasso hoje tão reiterado
e amplamente denunciado. É verdade que não se
denuncia um fato novo: fracasso em alfabetização nas
escolas brasileiras vem ocorrendo insistentemente há
muitas décadas; hoje, porém, esse fracasso configurase
de forma inusitada. Anteriormente ele se revelava
em avaliações internas à escola, sempre concentrado
na etapa inicial do ensino fundamental, traduzindose
em altos índices de reprovação, repetência, evasão;
hoje, o fracasso revela-se em avaliações externas à
escola – avaliações estaduais (como o SARESP, o
SIMAVE), nacionais (como o SAEB, o ENEM) e até
internacionais (como o PISA) –,5 espraia-se ao longo
de todo o ensino fundamental, chegando mesmo ao
ensino médio, e se traduz em altos índices de precário
ou nulo desempenho em provas de leitura, denunciando
grandes contingentes de alunos não alfabetizados
ou semi-alfabetizados depois de quatro, seis, oito anos
de escolarização. A hipótese aqui levantada é que a
perda de especificidade do processo de alfabetização,
nas duas últimas décadas, é um, entre os muitos e
variados fatores, que pode explicar esta atual “modalidade”
de fracasso escolar em alfabetização.
Talvez se possa afirmar que na “modalidade”
anterior de fracasso escolar – aquela que se manifestava
em altos índices de reprovação e repetência na
etapa inicial do ensino fundamental6 – a alfabetização
caracterizava-se, ao contrário, por sua excessiva
especificidade, entendendo-se por “excessiva especificidade”
a autonomização das relações entre o sistema
fonológico e o sistema gráfico em relação às demais
aprendizagens e comportamentos na área da
leitura e da escrita, ou seja, a exclusividade atribuída
a apenas uma das facetas da aprendizagem da língua
escrita. O que parece ter acontecido, ao longo das duas
últimas décadas, é que, em lugar de se fugir a essa
“excessiva especificidade”, apagou-se a necessária especificidade
do processo de alfabetização.
Várias causas podem ser apontadas para essa
perda de especificidade do processo de alfabetização;
limitando-me às causas de natureza pedagógica, cito,
entre outras, a reorganização do tempo escolar com a
implantação do sistema de ciclos, que, ao lado dos
aspectos positivos que sem dúvida tem, pode trazer –
e tem trazido – uma diluição ou uma preterição de
metas e objetivos a serem atingidos gradativamente
ao longo do processo de escolarização; o princípio da
progressão continuada, que, mal concebido e mal aplicado,
pode resultar em descompromisso com o desenvolvimento
gradual e sistemático de habilidades,
competências, conhecimentos. Não me detenho, porém,
no aprofundamento das relações entre esses aspectos
– sistema de ciclos, princípio da progressão
continuada – e a perda de especificidade da alfabetização,
porque me parece que a causa maior dessa perda
de especificidade deve ser buscada em fenômeno
mais complexo: a mudança conceitual a respeito da
aprendizagem da língua escrita que se difundiu no
Brasil a partir de meados dos anos de 1980.
Segundo Gaffney e Anderson (2000, p. 57), as
últimas três décadas assistiram a mudanças de para-
4 Convém esclarecer que as reflexões aqui desenvolvidas
têm como objeto privilegiado de análise a escola pública.
5 SARESP – Sistema de Avaliação da Rede Estadual de São
Paulo; SIMAVE – Sistema Mineiro de Avaliação da Educação Pública
; SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica;
ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio; PISA – Programa
Internacional de Avaliação de Estudantes.
6 É preciso reconhecer que esta modalidade de fracasso escolar
aqui caracterizada como anterior continua presente, ainda
não superada; o adjetivo anterior é aqui usado apenas para
diferenciá-la de uma nova modalidade que se vem revelando nas
últimas décadas .
Magda Soares
10 Jan /Fev /Mar /Abr 2004 No 25
digmas teóricos no campo da alfabetização que podem
ser assim resumidas: um paradigma behaviorista,
dominante nos anos de 1960 e 1970, é substituído,
nos anos de 1980, por um paradigma cognitivista, que
avança, nos anos de 1990, para um paradigma sociocultural.
Segundo os mesmos autores, se a transição
da teoria behaviorista para a teoria cognitivista
representou realmente uma radical mudança de paradigma,
a transição da teoria cognitivista para a perspectiva
sociocultural pode ser interpretada antes como
um aprimoramento do paradigma cognitivista que propriamente
como uma mudança paradigmática.
Embora Gaffney e Anderson situem essas mudanças
paradigmáticas no contexto norte-americano,
pode-se reconhecer as mesmas mudanças no Brasil,
aproximadamente no mesmo período;7 em relação
ao período que aqui interessa, pode-se afirmar que,
tal como ocorreu nos Estados Unidos, também no
Brasil os anos de 1980 e 1990 assistiram ao domínio
hegemônico, na área da alfabetização, do paradigma
cognitivista, que aqui se difundiu sob a discutível denominação
de construtivismo (posteriormente, socioconstrutivismo).
Ao contrário, porém, dos Estados
Unidos, em que esse paradigma foi proposto para todo
e qualquer conhecimento escolar, tomando como eixo
uma nova concepção das relações entre aprendizagem
e linguagem, traduzida no movimento que recebeu
a denominação de whole language,8 entre nós ele
chegou pela via da alfabetização, através das pesquisas
e estudos sobre a psicogênese da língua escrita,
divulgada pela obra e pela atuação formativa de Emilia
Ferreiro.9
Não é necessário retomar aqui a mudança que
representou, para a área da alfabetização, a perspectiva
psicogenética: alterou profundamente a concepção
do processo de construção da representação da
língua escrita, pela criança, que deixa de ser considerada
como dependente de estímulos externos para
aprender o sistema de escrita – concepção presente
nos métodos de alfabetização até então em uso, hoje
designados “tradicionais” –10 e passa a sujeito ativo
7 Gaffney e Anderson identificam as mudanças de paradigma
na área da alfabetização, nos Estados Unidos, nas três últimas
décadas (1970, 1980 e 1990), analisando relatos de pesquisa publicados
nas revistas Reading Research Quarterly (697 artigos) e
The Reading Teacher (3.018 artigos), no período de 1966 a 1998.
Uma comparação entre os resultados a que chegam esses autores
e os resultados da pesquisa sobre o estado do conhecimento a respeito
da alfabetização no Brasil, que vem sendo desenvolvida no
Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita – CEALE, da Faculdade
de Educação da UFMG (Soares & Maciel, 2000), mostram que
as mesmas tendências ocorrem também no Brasil.
8 A whole language tem sua origem em um conjunto de princípios
teóricos, com raízes basicamente psicolingüísticas, sobre
a natureza holística da linguagem, da aprendizagem e, conseqüentemente,
do ensino, que se difundiu nos Estados Unidos nos
anos de 1970, sob a liderança de Kenneth Goodman, tendo se concretizado
em proposta pedagógica; embora voltados para todas as
áreas do currículo (cf. Smith, Goodman & Meredith, 1970, uma
das primeiras obras sobre os princípios teóricos dessa visão
holística), esses princípios ganharam lugar e relevância sobretudo
na área do ensino da língua, e particularmente do ensino e aprendizagem
da língua escrita, tendo, nesta área, recebido apoio e reforço
de Frank Smith e sua teoria psicolingüística do processo de
leitura (cf. Smith, 1973 e 1997, para citar uma de suas primeiras
obras e uma recente, publicada quase 25 anos depois). A proposta
pedagógica da whole language para a alfabetização aproxima-se
das que, a partir de meados dos anos de 1980, no Brasil, derivaram
dos estudos sobre a psicogênese da língua escrita, de Emilia
Ferreiro e Ana Teberosky (1985).
9 A relação entre a concepção “construtivista” da aprendizagem
e a alfabetização foi compreendida de forma tão absoluta no
Brasil que se difundiu amplamente o conceito equivocado de que
só na fase da aprendizagem da língua escrita poderia um professor
ser “construtivista”.
10 Não se atribui, aqui, ao adjetivo “tradicional” o sentido pejorativo
que costuma ter; o termo é aqui utilizado para caracterizar,
de forma descritiva e não avaliativa, os métodos vigentes até o momento
da introdução da perspectiva “construtivista” na área da alfabetização;
é preciso lembrar que esses métodos hoje considerados
“tradicionais” um dia foram “novos” ou “inovadores” – o tradicional
não se esgota no passado, é fruto de um processo permanente
que não termina nunca: estamos construindo hoje o “tradicional” de
amanhã, quando outros “novos” surgirão.
Letramento e alfabetização
Revista Brasileira de Educação 11
capaz de progressivamente (re)construir esse sistema
de representação, interagindo com a língua escrita em
seus usos e práticas sociais, isto é, interagindo com
material “para ler”, não com material artificialmente
produzido para “aprender a ler”; os chamados prérequisitos
para a aprendizagem da escrita, que caracterizariam
a criança “pronta” ou “madura” para ser
alfabetizada – pressuposto dos métodos “tradicionais”
de alfabetização – são negados por uma visão interacionista,
que rejeita uma ordem hierárquica de habilidades,
afirmando que a aprendizagem se dá por uma
progressiva construção do conhecimento, na relação
da criança com o objeto “língua escrita”; as dificuldades
da criança, no processo de construção do sistema
de representação que é a língua escrita – consideradas
“deficiências” ou “disfunções”, na perspectiva
dos métodos “tradicionais” – passam a ser vistas como
“erros construtivos”, resultado de constantes reestruturações.
Sem negar a incontestável contribuição que essa
mudança paradigmática, na área da alfabetização,
trouxe para a compreensão da trajetória da criança
em direção à descoberta do sistema alfabético, é preciso,
entretanto, reconhecer que ela conduziu a alguns
equívocos e a falsas inferências, que podem explicar
a desinvenção da alfabetização, de que se fala neste
tópico – podem explicar a perda de especificidade do
processo de alfabetização, proposta anteriormente.
Em primeiro lugar, dirigindo-se o foco para o
processo de construção do sistema de escrita pela
criança, passou-se a subestimar a natureza do objeto
de conhecimento em construção, que é, fundamentalmente,
um objeto lingüístico constituído, quer se considere
o sistema alfabético quer o sistema ortográfico,
de relações convencionais e freqüentemente
arbitrárias entre fonemas e grafemas. Em outras palavras,
privilegiando a faceta psicológica da alfabetização,
obscureceu-se sua faceta lingüística – fonética e
fonológica.
Em segundo lugar, derivou-se da concepção construtivista
da alfabetização uma falsa inferência, a de
que seria incompatível com o paradigma conceitual
psicogenético a proposta de métodos de alfabetização.
De certa forma, o fato de que o problema da aprendizagem
da leitura e da escrita tenha sido considerado,
no quadro dos paradigmas conceituais “tradicionais”,
como um problema sobretudo metodológico contaminou
o conceito de método de alfabetização, atribuindo-
lhe uma conotação negativa: é que, quando se fala
em “método” de alfabetização, identifica-se, imediatamente,
“método” com os tipos “tradicionais” de
métodos – sintéticos e analíticos (fônico, silábico, global
etc.), como se esses tipos esgotassem todas as alternativas
metodológicas para a aprendizagem da leitura
e da escrita. Talvez se possa dizer que, para a
prática da alfabetização, tinha-se, anteriormente, um
método, e nenhuma teoria; com a mudança de concepção
sobre o processo de aprendizagem da língua
escrita, passou-se a ter uma teoria, e nenhum método.
Acrescente-se a esses equívocos e falsas inferências
o também falso pressuposto, decorrente deles e
delas, de que apenas através do convívio intenso com
o material escrito que circula nas práticas sociais, ou
seja, do convívio com a cultura escrita, a criança se
alfabetiza. A alfabetização, como processo de aquisição
do sistema convencional de uma escrita alfabética
e ortográfica, foi, assim, de certa forma obscurecida
pelo letramento, porque este acabou por
freqüentemente prevalecer sobre aquela, que, como
conseqüência, perde sua especificidade.
É preciso, a esta altura, deixar claro que defender
a especificidade do processo de alfabetização não
significa dissociá-lo do processo de letramento, como
se defenderá adiante. Entretanto, o que lamentavelmente
parece estar ocorrendo atualmente é que a percepção
que se começa a ter, de que, se as crianças
estão sendo, de certa forma, letradas na escola, não
estão sendo alfabetizadas, parece estar conduzindo à
solução de um retorno à alfabetização como processo
autônomo, independente do letramento e anterior a
ele. É o que estou considerando ser uma reinvenção
da alfabetização que, numa afirmação apenas aparentemente
contraditória, é, ao mesmo tempo, perigosa
– se representar um retrocesso a paradigmas anteriores,
com perda dos avanços e conquistas feitos nas
últimas décadas – e necessária – se representar a reMagda
Soares
12 Jan /Fev /Mar /Abr 2004 No 25
cuperação de uma faceta fundamental do processo de
ensino e de aprendizagem da língua escrita. É do que
se tratará no próximo tópico.
A reinvenção da alfabetização
Temos usado com freqüência na área da educação
a metáfora da “curvatura da vara”, a que os americanos
preferem a metáfora do “pêndulo”, ambas representando
a tendência ao raciocínio alternativo: ou
isto ou aquilo; se isto, então não aquilo.
A autonomização do processo de alfabetização,
em relação ao processo de letramento, para a qual se
está tendendo atualmente, pode ser interpretada como
a curvatura da vara ou o movimento do pêndulo para
o “outro” lado. O “lado” contra o qual essa tendência
se levanta, aquele que, de certa forma, dominou o
ensino da língua escrita não só no Brasil, mas também
em vários outros países, nas últimas décadas,
baseia-se numa concepção holística da aprendizagem
da língua escrita, de que decorre o princípio de que
aprender a ler e a escrever é aprender a construir sentido
para e por meio de textos escritos, usando experiências
e conhecimentos prévios; no quadro dessa
concepção, o sistema grafofônico (as relações
fonema–grafema) não é objeto de ensino direto e explícito,
pois sua aprendizagem decorreria de forma
natural da interação com a língua escrita. É essa concepção
e esse princípio que fundamentam a whole
language, nos Estados Unidos, e o chamado construtivismo,
no Brasil.
Entretanto, resultados de avaliações de níveis de
alfabetização da população em processo de escolarização,
que se multiplicaram nas duas últimas décadas,
no Brasil e em muitos outros países, têm levado
a críticas a essa concepção holística da aprendizagem
da língua escrita, incidindo essa crítica particularmente
na ausência, no quadro dessa concepção, de instrução
direta e específica para a aprendizagem do código
alfabético e ortográfico. Em países que, tradicionalmente,
têm inspirado a educação brasileira – França
e Estados Unidos –, essa crítica e recomendações dela
decorrentes foram recentemente expressas em documentos
oficiais e programas de ensino, de que convém
dar rápida notícia, uma vez que o movimento
que começa a esboçar-se entre nós nessa mesma direção
tem buscado neles (embora não só neles) fundamento
e justificação.
Na França, a constatação de dificuldades de leitura
e de escrita na população em fase de escolarização
levou o Observatório Nacional da Leitura, órgão
consultivo do Ministério da Educação Nacional, da
Pesquisa e da Tecnologia, a divulgar, no final dos anos
de 1990, o documento Apprendre à lire au cycle des
apprentissages fondamentaux (Observatoire National
de la Lecture, 1998), em que, com apoio em dados de
pesquisas sobre a aprendizagem da leitura, afirma-se
que o conhecimento do código grafofônico e o domínio
dos processos de codificação e decodificação constituem
etapa fundamental e indispensável para o acesso
à língua escrita, “condition nécessaire, bien que
non suffisante, de la comprehénsion des textes” (grifo
do original), etapa que não pode ser vencida
[...] sans une instruction explicite, visant d’une part la prise
de conscience du fait que la parole peut être décrite comme
une séquence linéaire de phonèmes, d’autre part, que les
caractères (ou groupes de caractères) alphabétiques
représentent les phonèmes. (p. 93)
Nos Estados Unidos, desde o início dos anos de
1990 tem sido intensa a discussão sobre a aprendizagem
da língua escrita na escola, discussão que se concentra,
sobretudo, em polêmicas que contrapõem a
concepção holística – whole language – à concepção
grafofônica – phonics.11 Em meados dos anos de 1990,
11 Na verdade, a discussão, nos Estados Unidos, em torno de
teorias e métodos de alfabetização antecede o debate em torno de
whole language e phonics, pois ela se vem desenvolvendo desde
os anos de 1960, configurando o que a literatura educacional daquele
país tem denominando The Reading Wars. Assim, já em 1967
foram realizados dois estudos sobre a alfabetização no país: The
cooperative research program in first-grade reading instruction, mais
conhecido como first-grade studies (Bond & Dykstra, 1967/1997)
Letramento e alfabetização
Revista Brasileira de Educação 13
a whole language, que vinha tendo grande difusão no
país desde meados dos anos de 1980, passou a ser contestada,
sobretudo por negar o ensino do sistema alfabético
e ortográfico e das relações fonema–grafema
de forma direta e explícita. Já em de 1990, a publicação
da obra de Marilyn Jager Adams, Beginning to
read : thinking and learning about print, levara à substituição
da oposição phonics versus whole-word, em
torno da qual se desenvolvia, até então, o debate, pela
oposição phonics versus whole language. Identificase
um paralelo com o que ocorreu no Brasil aproximadamente
na mesma época, quando o debate que
até então se fazia em torno da oposição entre métodos
sintéticos (fônico, silabação) e métodos analíticos
(palavração, sentenciação, global) foi suplantado pela
introdução da concepção “construtivista” na alfabetização,
bastante semelhante à whole language.
Os defensores do ensino direto e explícito das
relações fonema–grafema, no processo de alfabetização,
nos Estados Unidos, encontraram reforço no relatório
produzido, em 2000, pelo National Institute
of Child Health and Human Development (NICHD),
em resposta à solicitação do Congresso Nacional, alarmado
com os baixos níveis de competência em leitura
que avaliações estaduais e nacionais de crianças
em processo de escolarização vinham denunciando:
o National Reading Panel: teaching children to read
é um estudo de avaliação e integração das pesquisas
existentes no país sobre a alfabetização de crianças,
com o objetivo de identificar procedimentos eficientes
para que esse processo se realizasse com sucesso.
O subtítulo do relatório esclarece bem sua natureza:
An evidence-based assessment of the scientific
research literature on reading and its implications for
reading instruction.12 O relatório conclui que, entre
as facetas consideradas componentes essenciais do
processo de alfabetização – consciência fonêmica,
phonics13 (relações fonema–grafema), fluência em leitura
(oral e silenciosa), vocabulário e compreensão –,
as evidências a que as pesquisas conduziam mostravam
que têm implicações altamente positivas para a
aprendizagem da língua escrita o desenvolvimento da
consciência fonêmica e o ensino explícito, direto e
sistemático das correspondências fonema–grafema.
Retomando o título deste subtópico, pode-se perguntar:
nesse contexto – francês e norte-americano –
e Learning to read: the great debate (Chall, 1967); em 1985, foram
apresentados os resultados de um outro estudo, o relatório
Becoming a nation of readers (Anderson et al., 1985); novo estudo,
realizado por Marilyn Jager Adams, foi publicado em 1990,
Beginning to read : thinking and learning about print (Adams,
1990); em 1998, novo relatório é publicado: Preventing reading
difficulties in young children (Snow, Burns & Griffin, 1998); o
último estudo realizado, aquele que neste texto se comenta, é de
2000, publicado com o título de Report of the National Reading
Panel : teaching children to read (National Institute of Child Health
and Human Development, 2000). Uma análise e crítica desses relatórios
pode ser encontrada em Cowen (2003).
12 Foge aos limites deste texto uma reflexão, no entanto necessária,
sobre as estreitas relações entre pesquisa e ensino que se
consolidaram nos Estados Unidos, particularmente em decorrência
do No Child Left Behind Act, lei de 2001, que vinculou a concessão
de recursos a escolas com problemas na área da alfabetização
à fundamentação dos projetos em pesquisa quantitativa, experimental
ou quase-experimental; sobre isso, pelo menos três aspectos
mereceriam discussão: em primeiro lugar, o pressuposto de que
resultados de pesquisa, sobretudo com alto grau de controle de
variáveis, podem ser generalizados para toda e qualquer escola e
sala de aula, para todo e qualquer professor, todo e qualquer grupo
de alunos; em segundo lugar, o privilégio concedido à pesquisa
quantitativa e experimental, em detrimento da pesquisa qualitativa
e das abordagens etnográficas; em terceiro lugar, a exclusividade
atribuída às evidências “científicas” como fundamento para o ensino,
ignorando-se a contribuição das evidências decorrentes de
práticas bem-sucedidas. Para a reflexão sobre essas questões, sugere-
se a leitura de Cunningham (2001) e da “declaração de princípios”
(position statement) da International Reading Association,
What is evidence-based reading instruction? (IRA, 2002).
13 Não há substantivo em português correspondente ao substantivo
phonics da língua inglesa; isso tem levado à equivocada
interpretação, no Brasil, de que phonics, na literatura de língua
inglesa, traduz-se por método fônico de alfabetização.
Magda Soares
14 Jan /Fev /Mar /Abr 2004 No 25
o que constitui a reinvenção da alfabetização? Uma
análise tanto do documento francês – Apprendre à lire
– quanto do relatório americano – o National Reading
Panel – evidenciam que a concepção de aprendizagem
da língua escrita, em ambos, é mais ampla e
multifacetada que apenas a aprendizagem do código,
das relações grafofônicas; o que ambos postulam é a
necessidade de que essa faceta recupere a importância
fundamental que tem na aprendizagem da língua
escrita; sobretudo, que ela seja objeto de ensino direto,
explícito, sistemático. Entretanto, a questão tem
se colocado, particularmente nos Estados Unidos, e
começa a se colocar assim também entre nós, em termos
de antagonismo de concepções, uma oposição
de grupos a favor e grupos contra o movimento que
tem sido denominado a “volta ao fônico” (back to
phonics) – como se, para endireitar a vara, fosse mesmo
necessário curvá-la para o lado oposto, ou como
se o pêndulo devesse estar ou de um lado, ou de outro.
É essa tendência a radicalismos que torna perigosa
a necessária reinvenção da alfabetização.14
O que é preciso reconhecer é que o antagonismo,
que gera radicalismos, é mais político que propriamente
conceitual, pois é óbvio que tanto a whole
language, nos Estados Unidos, quanto o chamado
construtivismo, no Brasil, consideram a aprendizagem
das relações grafofônicas como parte integrante
da aprendizagem da língua escrita – ocorreria a alguém
a possibilidade de se ter acesso à cultura escrita
sem a aprendizagem das relações entre o sistema
fonológico e o sistema alfabético? A diferença entre
propostas como a do Apprendre à lire ou do National
Reading Panel, e propostas como a whole language
e o construtivismo está em que, enquanto nas primeiras
considera-se que as relações entre o sistema
fonológico e os sistemas alfabético e ortográfico devem
ser objeto de instrução direta, explícita e sistemática,
com certa autonomia em relação ao desenvolvimento
de práticas de leitura e escrita, nas
segundas considera-se que essas relações não constituem
propriamente objeto de ensino, pois sua aprendizagem
deve ser incidental, implícita, assistemática,
no pressuposto de que a criança é capaz de
descobrir por si mesma as relações fonema–grafema,
em sua interação com material escrito e por meio de
experiências com práticas de leitura e de escrita. Podese
talvez dizer que, no primeiro caso, privilegia-se a
alfabetização, no segundo caso, o letramento. O problema
é que, num e noutro caso, dissocia-se equivocadamente
alfabetização de letramento, e, no segundo
caso, atua-se como se realmente pudesse ocorrer
de forma incidental e natural a aprendizagem de objetos
de conhecimento que são convencionais e, em
parte significativa, arbitrários – o sistema alfabético
e o sistema ortográfico.
Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco
porque, no quadro das atuais concepções psicológicas,
lingüísticas e psicolingüísticas de leitura e
escrita, a entrada da criança (e também do adulto analfabeto)
no mundo da escrita ocorre simultaneamente
por esses dois processos: pela aquisição do sistema
convencional de escrita – a alfabetização – e pelo
desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema
em atividades de leitura e escrita, nas práticas
sociais que envolvem a língua escrita – o letramento.
Não são processos independentes, mas interdependentes,
e indissociáveis: a alfabetização desenvolve-se
no contexto de e por meio de práticas sociais de
leitura e de escrita, isto é, através de atividades de
letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver
no contexto da e por meio da aprendizagem das
relações fonema–grafema, isto é, em dependência da
alfabetização. A concepção “tradicional” de alfabetização,
traduzida nos métodos analíticos ou sintéticos,
tornava os dois processos independentes, a alfabetização
– a aquisição do sistema convencional de
escrita, o aprender a ler como decodificação e a es-
14 Alguns exemplos do antagonismo entre phonics e whole
language são: a coletânea de textos organizada por Kenneth
Goodman (1998); a veemente crítica de Elaine Garan (2002) ao
National Reading Panel; em posição oposta, a veemente crítica
da whole language e defesa do National Reading Panel por Louisa
Moats (2000).
Letramento e alfabetização
Revista Brasileira de Educação 15
crever como codificação – precedendo o letramento
– o desenvolvimento de habilidades textuais de
leitura e de escrita, o convívio com tipos e gêneros
variados de textos e de portadores de textos, a compreensão
das funções da escrita. Na concepção atual,
a alfabetização não precede o letramento, os dois processos
são simultâneos, o que talvez até permitisse
optar por um ou outro termo, como sugere Emilia
Ferreiro em recente entrevista à revista Nova Escola,
15 em que rejeita a coexistência dos dois termos
com o argumento de que em alfabetização estaria
compreendido o conceito de letramento, ou vice-versa,
em letramento estaria compreendido o conceito
de alfabetização – o que seria verdade, desde que se
convencionasse que por alfabetização seria possível
entender muito mais que a aprendizagem grafofônica,
conceito tradicionalmente atribuído a esse processo,
ou que em letramento seria possível incluir a aprendizagem
do sistema de escrita. A conveniência, porém,
de conservar os dois termos parece-me estar em
que, embora designem processos interdependentes,
indissociáveis e simultâneos, são processos de natureza
fundamentalmente diferente, envolvendo conhecimentos,
habilidades e competências específicos, que
implicam formas de aprendizagem diferenciadas e,
conseqüentemente, procedimentos diferenciados de
ensino. Sobretudo no momento atual, em que os equívocos
e falsas inferências anteriormente mencionados
levaram alfabetização e letramento a se confundirem,
com prevalência deste último e perda de
especificidade da primeira, o que se constitui como
uma das causas do fracasso em alfabetização que hoje
ainda se verifica nas escolas brasileiras, a distinção
entre os dois processos e conseqüente recuperação
da especificidade da alfabetização tornam-se metodologicamente
e até politicamente convenientes, desde
que essa distinção e a especificidade da alfabetização
não sejam entendidas como independência de
um processo em relação ao outro, ou como precedência
de um em relação ao outro. Assegurados esses
pressupostos, a reinvenção da alfabetização revelase
necessária, sem se tornar perigosa.
É que, diante dos precários resultados que vêm
sendo obtidos, entre nós, na aprendizagem inicial da
língua escrita, com sérios reflexos ao longo de todo o
ensino fundamental, parece ser necessário rever os
quadros referenciais e os processos de ensino que têm
predominado em nossas salas de aula, e talvez reconhecer
a possibilidade e mesmo a necessidade de estabelecer
a distinção entre o que mais propriamente
se denomina letramento, de que são muitas as facetas –
imersão das crianças na cultura escrita, participação
em experiências variadas com a leitura e a escrita, conhecimento
e interação com diferentes tipos e gêneros
de material escrito – e o que é propriamente a alfabetização,
de que também são muitas as facetas –
consciência fonológica e fonêmica, identificação das
relações fonema–grafema, habilidades de codificação
e decodificação da língua escrita, conhecimento e reconhecimento
dos processos de tradução da forma sonora
da fala para a forma gráfica da escrita. Por outro
lado, o que não é contraditório, é preciso reconhecer a
possibilidade e necessidade de promover a conciliação
entre essas duas dimensões da aprendizagem da
língua escrita,16 integrando alfabetização e letramento,
sem perder, porém, a especificidade de cada um
desses processos, o que implica reconhecer as muitas
facetas de um e outro e, conseqüentemente, a diversidade
de métodos e procedimentos para ensino de um
e de outro, uma vez que, no quadro desta concepção,
não há um método para a aprendizagem inicial da língua
escrita, há múltiplos métodos, pois a natureza de
cada faceta determina certos procedimentos de ensino,
além de as características de cada grupo de crian-
15 Ano XVIII, nº 162, p. 30, maio 2003.
16 A busca de conciliação entre letramento – whole language –
e alfabetização – phonics – já vem sendo tentada nos Estados
Unidos, com a sugestão de superação dos antagonismos pela opção
por uma balanced instruction, que admite a compatibilidade
entre as duas propostas e reconhece a possibilidade de sua coexistência
(cf. Cowen, 2003; Blair-Larsen & Williams, 1999; Freppon
& Dahl, 1998; Johnson, 1999).
Magda Soares
16 Jan /Fev /Mar /Abr 2004 No 25
ças, e até de cada criança, exigir formas diferenciadas
de ação pedagógica.17 Desnecessário se torna destacar,
por óbvias, as conseqüências, nesse novo quadro
referencial, para a formação de profissionais responsáveis
pela aprendizagem inicial da língua escrita por
crianças em processo de escolarização.18
Em síntese, o que se propõe é, em primeiro lugar,
a necessidade de reconhecimento da especificidade
da alfabetização, entendida como processo de
aquisição e apropriação do sistema da escrita, alfabético
e ortográfico; em segundo lugar, e como decorrência,
a importância de que a alfabetização se desenvolva
num contexto de letramento – entendido este,
no que se refere à etapa inicial da aprendizagem da
escrita, como a participação em eventos variados de
leitura e de escrita, e o conseqüente desenvolvimento
de habilidades de uso da leitura e da escrita nas práticas
sociais que envolvem a língua escrita, e de atitudes
positivas em relação a essas práticas; em terceiro
lugar, o reconhecimento de que tanto a alfabetização
quanto o letramento têm diferentes dimensões, ou
facetas, a natureza de cada uma delas demanda uma
metodologia diferente, de modo que a aprendizagem
inicial da língua escrita exige múltiplas metodologias,
algumas caracterizadas por ensino direto, explícito e
sistemático – particularmente a alfabetização, em suas
diferentes facetas – outras caracterizadas por ensino
incidental, indireto e subordinado a possibilidades e
motivações das crianças; em quarto lugar, a necessidade
de rever e reformular a formação dos professores
das séries iniciais do ensino fundamental, de modo
a torná-los capazes de enfrentar o grave e reiterado
fracasso escolar na aprendizagem inicial da língua
escrita nas escolas brasileiras.
MAGDA SOARES, livre-docente em educação, é professora
titular emérita da Faculdade de Educação da UFMG e pesquisadora
do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita – CEALE, dessa Faculdade.
Autora de vários artigos, capítulos de livros e livros sobre
ensino da língua escrita, é também autora de coleções didáticas para
o ensino de português, sendo a mais recente: Português – uma proposta
para o letramento (8 volumes para o ensino fundamental, Editora
Moderna). Publicações recentes sobre o tema do artigo: Letramento:
um tema em três gêneros (Autêntica, 1996) e Alfabetização
e letramento (Contexto, 2003), os capítulos de livros “Letramento e
escolarização” (no livro Letramento no Brasil, organizado por Vera
Masagão Ribeiro, Global, 2003), “Aprender a escrever, ensinar a
escrever” (no livro A magia da linguagem, organizado por Edwiges
Zaccur, DP&A, 1999), “A escolarização da literatura infantil e juvenil”
(no livro A escolarização da leitura literária, organizado por
Aracy Alves Martins Evangelista et al., Autêntica, 1999), o documento
Alfabetização, em co-autoria com Francisca Maciel, produto
de pesquisa sobre o estado do conhecimento a respeito da alfabetização,
no Brasil (publicação MEC/INEP/COMPED, 2001, na série
Estado do Conhecimento). Organizou o dossiê sobre letramento,
publicado no periódico Educação e Sociedade, nº 81, dezembro de
2002. E-mail: mbecker.soares@terra.com.br
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Association.
17 A respeito da necessária multiplicidade de métodos para o
ensino inicial da leitura e da escrita, é elucidativa a “declaração
de princípios” (position statement) da International Reading
Association, Using multiple methods of beginning reading
instruction (IRA, 1999).
18 O que aqui se diz sobre a aprendizagem inicial da língua
escrita por crianças em processo de escolarização também se aplica
a adultos; a diferença está, fundamentalmente, na natureza das experiências
e práticas de leitura e escrita proporcionadas a estes, e na
necessária adequação do material escrito envolvido nessas experiências
e práticas. Convém, assim, destacar a necessidade de uma
formação para o responsável pela aprendizagem inicial da escrita
por adultos tão específica e complexa quanto é a formação para o
responsável pela aprendizagem inicial da escrita por crianças.
Letramento e alfabetização
Revista Brasileira de Educação 17
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Recebido e aprovado em outubro de 2003
Recomendações
Para os professores que trabalham com
alfabetização, Magda recomenda:
“Alfabetize letrando sem descuidar da
especificidade do processo de alfabetização,
especificidade é ensinar a criança e ela
aprender.O aluno precisa entender a tecnologia da
5Há convenções que precisam ser ensinadas e
aprendidas, trata-se de um sistema de convenções com
bastante complexidade. O estudante (além de decodificar
letras e palavras) precisa aprender toda uma tecnologia
muito complicada: como segurar o lápis, escrever de cima
pra baixo e da esquerda para a direita; escrever numa
linha
horizontal, sem subir ou descer. São convenções que os
adultos letrados acham óbvias, mas que são difíceis para
as
crianças. E no caso dos professores dos ciclos mais
avançados do ensino fundamental, o importante é cuidar de
letramento em cada área específica.
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